As lutas pelo restabelecimento das liberdades democráticas no Brasil se acirraram a partir da decretação do Ato Institucional Nº 5 em dezembro de 1968. Até esta data havia um crescente inconformismo diante da inflexibilidade dos governos militares em propor uma volta ao estado de direito. Sob a guarda da censura, jornais, revistas, artistas, músicos e intelectuais de todos os gêneros e opiniões tinham suas vozes permanentemente ceifadas ou proibidas mesmo, sob o argumento vil de que conspiravam contra a ordem vigente. Eram portanto, elementos nocivos ao regime e tachados de subversivos ou comunistas.
Era uma realidade muito difícil, pois era insuportável conviver com um controle paranóico de idéias onde qualquer cidadão era suspeito pelo simples fato de expor seus pensamentos, principalmente se eles fossem contra o atual quadro político em que vivíamos. Nesse aspecto surgiu no Brasil um grupo de homens livres que se entregaram numa cruzada de resistência ideológica e fizeram disso uma bandeira de luta, mesmo sabendo dos riscos que corriam, porém, valia a pena o enfrentamento, até porque lutar pela liberdade é um ato heróico e cívico, além é claro de ser um dos princípios fundamentais da humanidade.
No campo especifico da música popular é do conhecimento de todos as perseguições enfrentadas por compositores como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Taiguara e muitos outros que lutavam contra o arbítrio que imperava no Departamento Nacional de Censura, órgão oficial do governo com autonomia para monitorar a produção intelectual do país. Apesar de todas as dificuldades era necessário não se deixar esmorecer, fraquejar naquele momento seria desastroso e um ato de covardia diante da pátria e do que ela significava para cada um de nós.
No meio desse tiroteio alguns nomes se destacavam, e alem dos já citados um se fez vibrante, inconformado, realista e determinado, era o paulista Sergio Ricardo. Construindo sua carreira de cantor, compositor e cineasta desde os anos cinqüenta, foi um dos mais duros e competentes combatentes da ditadura durante a década de sessenta. Nunca se deixou levar por ilusões, sabia e percebia perfeitamente o que se preparava para o país a partir de março de 1964. Desde cedo pode verificar a virulência dos conspiradores e sua intenção de instaurar no Brasil um regime de força, onde liberdade era uma palavra inexistente sendo substituída no vocabulário dos donos do poder por arbítrio.
Perseguido implacavelmente Sergio Ricardo foi seguindo seu caminho, e suas canções demonstravam a sua capacidade de resistência alem de criarem uma parte significativa da trilha sonora dos anos de chumbo. Um exemplo dessa síntese de lutas musicais e poéticas esta bem delineado no seu melhor trabalho realizado em 1973, um LP que traz em seu repertório as mais engajadas canções de sua autoria e que são um marco representativo do pensamento radical de um artista que denunciava um dos períodos mais desastrosos da vida brasileira.
O disco que leva seu nome tem na capa dupla o seu retrato quando enfrentava as vaias do público no III Festival da Canção Popular da TV Record de 1967 quando interpretava a canção Beto bom de Bola, resultando em sua revolta jogando o violão na platéia, vem com uma tarja branca na sua boca, que sai carregada pelo símbolo da censura criado pelo cartunista Caulos, e depois se senta num banquinho com ela na posição de um atento ouvinte das musicas cujas letras são abertas em leque.
A maioria das canções do disco são dos anos sessenta, e algumas estavam vetadas pela censura, mas eram exaustivamente cantadas por Sergio Ricardo em seus shows. Dentre eles destacam-se Calabouço feita em 1968 no calor dos acontecimentos que resultaram na morte do estudante Edson Luiz no restaurante universitário do mesmo nome; Sina de Lampião, é um retrato das ilusões perdidas de um povo sofrido, humilhado e sem perspectivas; Antonio das Mortes, em parceria com Glauber Rocha fez parte da trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol; Canto americano, reflete a esperança de uma América Latina livre, numa época em que o continente estava mergulhado em sangrentas ditaduras; Vou renovar, é uma embolada bem humorada cuja letra sempre era modificada por Sergio Ricardo a depender da ocasião, no disco ela nos remete a uma idealização de uma sociedade sem distinção de classes e sofreu vetos da censura tendo que substituir a palavra comunista por colunista
Em Semente, e Beira do cais, temos duas canções com um discurso lírico, sensual e resistente; Juliana do amor perdido, a única peça instrumental do LP traz influencias armoriais nordestinas, barrocas, bem brasileiras. O disco se encerra com Tocaia onde o discurso panfletário metafórico se insinua de maneira contundente.
Ao ouvirmos este trabalho de Sergio Ricardo verificamos que a história do Brasil pode também ser entendida e contextualizada através de belas canções, e que a briga por um país cada vez mais livre e democrático e com menos desigualdades sociais representam aspirações permanentes, não importa o tempo de luta, pois são atemporais, eternas.
Luiz Américo Lisboa Junior
Itabuna, 18 de novembro de 2004.
Músicas:
01) Calabouço (Sergio Ricardo)
02) Deus de barro (Sergio Ricardo)
03) Semente (Sergio Ricardo)
04) Sina de Lampião (Sergio Ricardo)
05) Juliana do amor perdido (Sergio Ricardo)
06) Beira do cais (Sergio Ricardo)
07) Antonio das Mortes (Glauber e Rocha e Sergio Ricardo)
08) Canto americano (Sergio Ricardo)
09) Vou renovar (Sergio Ricardo)
10) Tocaia (Sergio Ricardo)
Ficha Técnica
Produção: Sergio Ricardo
Mixagem: Luigi Hoffer
Gravação: Somil
Capa: Caulos
Foto de Sergio Ricardo - Teatro Record 1967
Fotos da contra capa: Sergio Bernardo
Sergio Ricardo: Voz, viola, violão e piano
Piri: Viola, violão, rabeca e bandolim
Cássio: Baixo elétrico e viola
Franklim: Flauta doce e flauta em dó transversa
Paulinho Camafeu: Percussão.
www.luizamerico.com.br
Luiz Américo Lisboa Junior
Itabuna, 18 de novembro de 2004.
"Joguei pedrinhas na água, de pesadas foram ao fundo. Então os peixinhos disseram: - Ei, pára de jogar pedra aqui!" ¡Pablo Moraïs!
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