👤# CECILIA MEIRELES - A ARTE DE SER FELIZ
A Arte de Ser Feliz...
Cecília Meireles
(Quadrante, pág. 13-15, Editora do Autor, s/d)
Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do
chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costumava pousar
um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma
cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança,
achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz. Houve
um tempo em que a minha janela dava para um canal. No canal oscilava um
barco. Um barco carregado de flôres. Para onde iam as flores? quem as
comprava? em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua
breve existência? E que mãos as tinham criado? E que pessoas iam sorrir
de alegria ao recebê-las? Eu não era mais criança, porém minha alma
ficava completamente feliz. Houve um tempo em que minha janela se
abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa
redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia
sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a
podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a
entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil. Mas as
crianças tinham tal expressão no rosto, e às vêzes faziam com as mãos
arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava
os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz. Houve um
tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser
feita de giz. Perto da janela havia um jardim quase seco. Era numa época
de estiagem, da terra esfarelada,e o jardim parecia morto. Mas todas as
manhãs vinha um pobre homem com um balde,e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sôbre as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava
para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus
dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a
janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens
espêssas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam o
muro. Gatos que abrem e fechamos olhos, sonhando com pardais. Borboletas
brancas, duas a duas, como refletidas no espelho no ar. Marimbondos que
sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o
seu destino. Eu me sinto completamente feliz. Mas quando falo dessas
pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem
que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas
janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para
poder vê-las assim.
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